Um aviso: isso aqui é acontecimento verídico. É força incontrolável. E admitir esta violência é uma necessidade a esta história que é um espasmo. Eu, opiniático vivo, naquele momento e lugar, congelei perante a um olhar profundo: ao de uma mulher elevada em mistério. Alguém mais atento notaria de quem se tratava, mas reconhecê-la não era o mais importante, pois presenciei a vida. Ocorreu desta forma: às sete e quarenta da manhã, sexta-feira, eu era o terceiro de uma fila em uma padaria, aguardando o atendimento quando de mim se aproximava uma senhora de roupas finas, acompanhada de uma senhorita mais nova, também com roupas bem aprumadas. A jovem parecia ser a filha da senhora elegante. As duas recostaram-se na ordem, atrás, resolutas. Acabou. Este é o fim da história. Este conto é tão simples que se encerra rápido com um terrível ponto. Porém na seriedade da fila nada desejava final. Pairava no ar um nascimento de luz pura, engendrada em silêncio. Contudo a culpa fora minha, saliento com antecedência, pois invadi um mundo que não era meu: o do interior dos olhos de outrem. Eu tinha notado tudo, suas roupas, seus gestos, menos o seu olhar: imposição. Olhei-a de cima a baixo, chegando aos olhos: espanto e negação e reconhecimento e turbulência e invasão. Ausência. Eram águas passadas, era tarde: prisão, entrega. A bela garota dos olhos intrigantes olhou-me honesta: escondia algum segredo nos olhos, percebi sem jeito. Mas meu espanto fora maior: não era ela uma mulher, era um grito e um pedido de socorro. E era também uma interrogação, assim: existo para mim? Encarou-me sorrindo. Ela tinha uma felicidade (fingida?) evidente e sem culpa. Meu coração externou-se e de súbito indaguei: como é possível uma felicidade sem receio? É como alguém que não sabe da própria existência. Ela era violenta no ato de existir. Existia confundida. Ela nasceu e ninguém a contou do mundo. É uma existência de si só. Continuou a me olhar. Queria contar-me algo? E os meus segredos? Ela lera-os? Eu que achava que a desvendava, era ela quem me descobria todo. Na padaria silenciosa, todos presenciavam aquele atormento que aos poucos eu desconfiava que fosse o meu. E eu, com os pães na mão, o que falaria para mim em expressão de auto-consolo? Eu que estava sendo despido pela simplicidade bigbangmática da vida. Inclinei-me para frente como num ato de salvação. Não há um só que presencie a transparência da alma transfigurada de perto e continue o mesmo. Eu que achava que era transparente. Agora eu sei: sou canto de parede. Mas, ânimo! Descobri o dia de hoje: acordei para me desfazer do engano. Agradeci ao padeiro pelos pães e fiz menção de ir embora. Adeus. Virei lentamente para não esbarrar no olhar da dama. Segui sem piscar. Olhos com foco. Passos firmes. A saída logo à frente: nunca mais aquele descuido. Alguns segundos: fora o tempo necessário que me fizera repensar todo um plano de vida e sobre em que estariam alicerçados meus projetos. Mas alguém a contou? Alguém contou para ela? Se alguém a encontrar conta depressa que não se olha nos olhos dos outros com uma violenta alma sem receio e sem complexos. Sem receio e sem complexos! Como defender-me de alguém livre de si mesmo? Livre do mundo e para o mundo. Vazia. Vazia dos padrões que dão para alguém o título de humano pleno. Aonde encontrar sentimentos iguais ao dela capazes de tornar aquele olhar no mínino dizível, porque o que pude ler naquela vida é incontável e está acima de qualquer pedido de confissão. Eu, que tinha os pães no braço, saí correndo mundo afora, totalmente perdido de mim e da vida. Eu que jamais serei o mesmo. Violentado. Emparedado. Humanizado. A jovem de olhos secretos era desse jeito: não tinha sequer um motivo para existência de sua alma. Existia plena e coágula. Existia para mim e para mais ninguém. Existia em meus segredos. Ela que era um segredo inteiro. Passaram-se semanas até que eu abrisse o Jornal da Cidade pela manhã e lesse: “Nesta sexta-feira, a filha do prefeito Damião Double, 62 anos, Cristina Double, 26 anos, acompanhada da mãe, Marília Double, 51 anos, fora atropelada ao sair de uma padaria por um carro. Houve um grande tumulto, e, desesperada, a esposa do prefeito, abaixada, adiantou-se, pressiona o pulso da filha, constatando vida. Aliviada, a senhora Double, ao chão, esforça-se em fazer sua primogênita falar: “Cristina, diz alguma coisa, está me ouvindo?”, clama. Após um instante de agonia, a senhorita Cristina abre os olhos: “filha, diz alguma coisa”, persiste Dona Double. Cristina em um último suspiro, diz: “mãe, só o que pode ser loucura concreta é aquilo que se enxerga dentro dos olhos: loucura é vida incontável”, desabafa Cristina e morre subitamente, deixando uma mãe inconsolada. “Cristina tinha distúrbio mental desde pequena”, finalizou as linhas do jornal. Terminara de ler, arrebatado. Ausente de mim e dos outros. Eu não era nem mais cósmico: eu era Cristina naquele asfalto: para sempre incompreendido.
Pedro Costa, 20/02/202 às 03:21